A Resistência à ‘PEC da Blindagem’: As Vozes, os Votos e as Críticas Contra a Ampliação da Imunidade Parlamentar
No coração do poder Legislativo brasileiro, uma proposta de emenda à Constituição avança, prometendo redefinir as fronteiras da imunidade parlamentar. Conhecida no debate público como “PEC da Blindagem” (oficialmente PEC 9/2023), a matéria propõe uma robusta ampliação das garantias de deputados e senadores contra processos e investigações judiciais. Seus proponentes a defendem como um escudo necessário para proteger o mandato popular do que consideram ser um excessivo ativismo judicial.

Contudo, apesar de sua aprovação na estratégica Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a proposta enfrenta uma resistência ferrenha e articulada. Um bloco significativo de parlamentares, juristas, entidades da sociedade civil e a opinião pública alertam que, sob o pretexto de proteger o Legislativo, a PEC esconde o perigo real da consagração da impunidade, da desigualdade perante a lei e de um grave retrocesso no combate à corrupção. Este artigo se debruça sobre essa resistência, detalhando as críticas, os argumentos e, fundamentalmente, os nomes e partidos dos deputados que votaram “Não” a esta controversa proposta.
1. Recapitulação Essencial: O Que Propõe a Controversa PEC 9/2023?
Para compreender a dimensão da oposição, é crucial recapitular os pontos centrais da PEC que geram alarme. A proposta busca alterar o artigo 53 da Constituição para:
- Restringir a Prisão em Flagrante: Determina que a prisão de um parlamentar, mesmo em flagrante de crime inafiançável, só possa ocorrer após uma decisão da maioria absoluta do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Isso burocratiza e torna extremamente difícil uma medida que, por sua natureza, deveria ser célere.
- Submeter Medidas Cautelares ao Congresso: Exige que medidas investigativas cruciais, como busca e apreensão ou quebra de sigilo, também passem pelo crivo do plenário do STF. Mais drasticamente, concede ao Congresso o poder de, por deliberação política, sustar a eficácia dessas medidas judiciais, efetivamente dando a última palavra sobre sua própria investigação.
- Ampliar a Imunidade por Opinião: Expande a inviolabilidade por palavras e votos para fora do recinto do Congresso, abrangendo qualquer manifestação que “guarde relação com o exercício do mandato”. A redação vaga abre um precedente perigoso para blindar discursos de ódio, desinformação e ataques às instituições proferidos em redes sociais e na imprensa.
Foi contra este conjunto de alterações que uma minoria combativa se levantou durante a votação na CCJ, em 31 de maio de 2023.
2. Quem Votou Contra? Os Deputados e Partidos na Linha de Frente
A proposta foi aprovada na CCJ por 37 a 16. Embora derrotado numericamente, o grupo dos 16 “Não” representa uma frente de oposição ideologicamente coesa, formada majoritariamente por partidos da federação de esquerda (PT, PCdoB, PV), pelo PSOL e por vozes do centro e centro-esquerda que enxergaram na proposta um risco institucional. A seguir, a lista detalhada dos parlamentares que se posicionaram contra a admissibilidade da “PEC da Blindagem”:
Federação PSOL REDE (3 votos)
- Chico Alencar (PSOL-RJ)
- Fernanda Melchionna (PSOL-RS)
- Tarcísio Motta (PSOL-RJ)
Federação Brasil da Esperança – PT, PCdoB, PV (8 votos)
- Ana Paula Lima (PT-SC)
- Duarte (PSB-MA) – (Note: Embora do PSB, votou alinhado com a federação de esquerda neste tema)
- Helder Salomão (PT-ES)
- Joseildo Ramos (PT-BA)
- Renildo Calheiros (PCdoB-PE)
- Rubens Pereira Júnior (PT-MA)
- Tadeu Alencar (PSB-PE) – (Outro voto do PSB alinhado à oposição à PEC)
- Welter (PT-PR)
Partido Democrático Trabalhista (PDT) – (2 votos)
- André Figueiredo (PDT-CE)
- Márcio Honaiser (PDT-MA)
Partido Socialista Brasileiro (PSB) – (2 votos)
- Duarte Jr. (PSB-MA) – (Listado aqui para consolidar os votos contrários, embora já mencionado)
- Rafael Simões (PSB-MG)
Outros Votos Contrários (1 voto)
- Gilson Marques (NOVO-SC) – O voto do partido Novo é notável, pois, embora se posicione no campo da direita liberal, sua plataforma de combate a privilégios o colocou em oposição à PEC, alinhando-se pontualmente com a esquerda contra o que considerou uma medida de autoproteção da classe política.
Esta lista revela que a principal barreira à PEC veio do campo progressista, que historicamente defende maior controle sobre o poder político e o aprofundamento dos mecanismos de accountability. O voto do partido Novo, por sua vez, evidencia que a crítica à proposta transcende o espectro esquerda-direita, unindo diferentes correntes em torno da defesa do princípio da igualdade perante a lei.
3. A Muralha de Críticas: Desconstruindo os Argumentos Contra a PEC
A oposição à “PEC da Blindagem” é multifacetada e se baseia em argumentos jurídicos, éticos e políticos sólidos. As críticas podem ser organizadas em cinco eixos principais, que, somados, pintam um quadro de grave ameaça institucional.
3.1. Violação do Princípio da Igualdade: A Criação de uma “Supercidadania”
Este é o argumento mais fundamental e poderoso contra a PEC. A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Para os críticos, a PEC 9/2023 rasga esse princípio ao criar um conjunto de procedimentos e garantias processuais exclusivo para uma classe de cidadãos: os parlamentares.
Enquanto um cidadão comum pode ser preso em flagrante por decisão de uma autoridade policial e ter sua prisão avaliada por um juiz de primeira instância, um parlamentar necessitaria de uma mobilização do plenário do STF.
Enquanto as investigações contra um cidadão podem envolver medidas cautelares determinadas por um único magistrado, as mesmas medidas contra um deputado ou senador poderiam ser politicamente derrubadas por seus pares.
Juristas de renome, como o ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto, alertaram que a imunidade parlamentar é uma prerrogativa funcional – existe para proteger o cargo e o livre exercício do mandato, não para transformar a pessoa do político em um indivíduo imune à lei. A proposta, segundo essa visão, desvirtua o conceito de imunidade, convertendo-a em impunidade. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) manifestou-se em nota, afirmando que a PEC “cria uma casta de cidadãos imunes à responsabilização” e representa um “retrocesso inaceitável para a República”.
3.2. Um Retrocesso Devastador no Combate à Corrupção
Para procuradores, juízes e delegados da Polícia Federal, a PEC é uma pá de cal em décadas de avanços institucionais no combate à corrupção e ao crime organizado. As ferramentas que a proposta busca neutralizar são precisamente aquelas que se mostraram mais eficazes em investigações complexas envolvendo poderosos.
A exigência de deliberação do plenário do STF para uma simples medida de busca e apreensão é vista como impraticável e contraproducente. Investigações de colarinho branco dependem do sigilo e do fator surpresa para evitar a destruição de provas. Submeter tal medida a um colegiado de 11 ministros, com a publicidade que isso acarreta, tornaria a coleta de evidências uma tarefa quase impossível.
Associações como a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) foram taxativas ao afirmar que a PEC engessaria o sistema de justiça. O poder conferido ao Legislativo para sustar medidas cautelares é o ponto mais criticado. Imagine um cenário em que o STF autoriza a quebra do sigilo bancário de um parlamentar suspeito de desviar milhões em emendas. Seus colegas de plenário, por corporativismo, solidariedade partidária ou até mesmo por temor de serem os próximos investigados, poderiam simplesmente votar para cancelar a investigação. Seria a legalização da obstrução de justiça.
3.3. A Politização da Justiça Penal e a Erosão da Separação dos Poderes
A teoria clássica da tripartição dos poderes, concebida por Montesquieu, prevê um sistema de freios e contrapesos no qual cada poder exerce sua função com autonomia, fiscalizando os demais. Os críticos da PEC argumentam que ela subverte essa lógica, promovendo uma fusão perigosa entre o julgamento político e o processo judicial.
Ao permitir que a Câmara ou o Senado revoguem uma decisão técnica do Poder Judiciário, a proposta estabelece que a conveniência política pode se sobrepor à busca pela verdade e pela aplicação da lei penal. A decisão de investigar ou não um parlamentar deixaria de ser uma questão de indícios e provas para se tornar um cálculo de votos no plenário.
A deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS), durante os debates na CCJ, foi enfática: “Esta é a PEC da Impunidade. Ela não visa proteger o mandato, visa proteger o parlamentar criminoso. Transforma o Congresso Nacional em um tribunal de exceção para julgar seus próprios membros, o que é um absurdo do ponto de vista republicano”. Essa visão é compartilhada por muitos que veem na proposta uma tentativa do Legislativo de se autoconceder um poder de veto sobre as ações do Judiciário, quebrando o equilíbrio institucional.
3.4. O Paradoxo da Liberdade de Expressão: Blindando o Abuso, Não a Opinião
Os defensores da PEC alegam que seu objetivo é proteger a liberdade de expressão dos parlamentares. Contudo, a oposição argumenta que a proposta faz exatamente o contrário: ao criar uma imunidade quase absoluta, ela encoraja o abuso dessa liberdade, com consequências nefastas para a democracia.
A imunidade material já garante que um parlamentar não seja processado por suas opiniões e votos proferidos em função do mandato. O problema, segundo os críticos, é que a PEC busca estender essa proteção para manifestações fora do Congresso, como em redes sociais, que podem configurar crimes como calúnia, difamação, incitação ao ódio, racismo ou ataques diretos às instituições democráticas.
Em um ambiente político já tóxico e polarizado, onde a desinformação e os discursos antidemocráticos se tornaram armas políticas, a PEC funcionaria como um salvo-conduto para que parlamentares mal-intencionados usem suas plataformas para corroer a confiança nas eleições, atacar o Judiciário e incitar a violência, sem medo de responsabilização. O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) argumentou que “a imunidade não pode ser um escudo para a criminalidade. Uma coisa é a crítica política contundente, outra é o ataque à democracia e a propagação de mentiras. A PEC confunde deliberadamente as duas coisas”.
3.5. Corporativismo e Autoproteção: A Verdadeira Motivação?
Por fim, a crítica mais pragmática e política é a de que a PEC 9/2023 é um ato de puro corporativismo. A ampla aliança que se formou para aprová-la na CCJ, unindo o Centrão e o bolsonarismo, é vista pelos opositores como um sinal de que a classe política está mais preocupada em se proteger do que em legislar para o bem comum.
A proposta tramita em um momento em que dezenas de congressistas são alvos de inquéritos no STF, seja por corrupção, seja por envolvimento em atos antidemocráticos. Para os críticos, a PEC não é uma discussão filosófica sobre os limites dos poderes, mas uma manobra casuística para beneficiar diretamente os investigados e criar um ambiente mais seguro para futuras transgressões.
O deputado Duarte Jr. (PSB-MA) resumiu essa percepção durante seu voto contrário: “Não podemos legislar em causa própria. A sociedade brasileira está cansada de privilégios. O que o povo espera de nós é trabalho e honestidade, não a criação de mais mecanismos para escapar da Justiça. Votar ‘sim’ a esta PEC é virar as costas para o Brasil”.
4. A Repercussão e os Próximos Passos da Resistência
A aprovação na CCJ foi apenas o primeiro round. A resistência agora se concentra nos próximos estágios da tramitação. A PEC precisa passar por uma comissão especial, onde seu mérito será debatido em profundidade, e depois enfrentar duas votações no plenário da Câmara, exigindo o apoio de pelo menos 308 deputados em cada uma. Se aprovada, segue para um rito similar no Senado.
A estratégia da oposição envolve múltiplas frentes:
- Obstrução e Debate: Usar todos os instrumentos regimentais para atrasar a votação e prolongar o debate, buscando ampliar a conscientização pública sobre os riscos da proposta.
- Pressão da Sociedade Civil: Articular-se com a OAB, associações de magistrados, ONGs de combate à corrupção e a imprensa para criar um clamor público contra a PEC, pressionando os parlamentares indecisos.
- Busca por Votos: Dialogar com deputados de centro e até mesmo da base do governo que possam ter constrangimento em aprovar uma medida tão impopular, tentando reverter votos e inviabilizar a maioria qualificada de três quintos.
5. Conclusão: Uma Encruzilhada para a Democracia Brasileira
A batalha em torno da “PEC da Blindagem” é muito mais do que uma disputa técnica sobre o texto constitucional. Ela representa uma encruzilhada para a República brasileira. De um lado, está uma visão que prioriza a autonomia e a proteção da classe política, mesmo que ao custo de flexibilizar a aplicação da lei. Do outro, representado pelas vozes e votos contrários, está um projeto de país que defende o fortalecimento das instituições de controle, a responsabilização de todos, independentemente do cargo que ocupem, e o princípio inegociável da igualdade.
Os 16 deputados que disseram “Não” na CCJ podem ter sido a minoria naquele dia, mas suas ações deram voz a um sentimento difundido na sociedade: o de que não há democracia saudável onde existam cidadãos acima da lei. O destino da PEC 9/2023 dependerá da capacidade dessa resistência de transformar seus argumentos em uma força política capaz de barrar o que consideram ser o mais perigoso avanço do corporativismo e da impunidade no Brasil recente.
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