×

A “PEC da Blindagem”: Análise Profunda da Proposta que Redefine a Imunidade Parlamentar no Brasil

PEC da Blindagem

A “PEC da Blindagem”: Análise Profunda da Proposta que Redefine a Imunidade Parlamentar no Brasil

Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que tramita no Congresso Nacional acendeu um intenso debate sobre os limites da imunidade parlamentar e o combate à corrupção no Brasil. Apelidada pela imprensa e por críticos de “PEC da Blindagem” ou “PEC da Impunidade”, a proposta, oficialmente numerada como PEC 9/2023, visa alterar o artigo 53 da Constituição Federal para ampliar significativamente as garantias de deputados e senadores contra processos judiciais e prisões.

image-24 A "PEC da Blindagem": Análise Profunda da Proposta que Redefine a Imunidade Parlamentar no Brasil
“PEC da Blindagem” ou “PEC da Impunidade

Seus defensores argumentam que a medida é necessária para proteger o livre exercício do mandato contra o que chamam de “ativismo judicial” e perseguições políticas. Por outro lado, críticos alertam para um grave retrocesso, afirmando que a PEC cria uma casta de cidadãos acima da lei, minando os alicerces do princípio republicano da igualdade e enfraquecendo as ferramentas de combate à corrupção. Este artigo explora o conteúdo da proposta, o contexto de sua criação, os argumentos de ambos os lados e detalha como votaram os deputados na sua mais importante deliberação até agora: a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

1. O Contexto: Tensão entre Poderes e a Gênese da Proposta

A PEC 9/2023 não surgiu em um vácuo. Ela é o reflexo de anos de crescente tensão entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal (STF). O ponto de inflexão que catalisou a apresentação e a tramitação acelerada desta proposta foi a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (então no PSL-RJ) em fevereiro de 2021, por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Silveira havia publicado vídeos com ameaças e ofensas a ministros do STF e defendendo o AI-5, um dos mais duros atos institucionais da ditadura militar.

A prisão, baseada no conceito de flagrante de crime inafiançável (neste caso, crimes contra a segurança nacional e a ordem democrática), foi referendada pelo plenário do STF e, posteriormente, pela Câmara dos Deputados. No entanto, o episódio gerou um profundo mal-estar no Congresso. Muitos parlamentares, mesmo discordando do conteúdo das declarações de Silveira, viram na decisão do STF uma violação da prerrogativa da imunidade parlamentar e uma perigosa precedente de interferência do Judiciário na autonomia do Legislativo.

Para os defensores da PEC, a prisão de um deputado por “crimes de opinião”, mesmo que de natureza antidemocrática, representou o ápice de um suposto “ativismo judicial”. Eles argumentam que operações como a Lava Jato e decisões monocráticas de ministros do STF criaram um clima de insegurança jurídica para os políticos, onde mandatos poderiam ser interrompidos ou ameaçados por interpretações judiciais que eles consideram excessivas. A narrativa construída foi a de que o mandato popular precisa de uma “blindagem” extra para que deputados e senadores possam exercer suas funções – legislar, fiscalizar e, sobretudo, opinar – sem medo de retaliação judicial.

Nesse cenário, a PEC 9/2023, de autoria do deputado Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP) e com relatoria do deputado Delegado Fabio Costa (PP-AL), foi apresentada como uma solução para “restabelecer o equilíbrio” entre os poderes e garantir a “inviolabilidade” do mandato parlamentar, conforme previsto na Constituição, mas de uma forma muito mais expansiva.

2. Desvendando o Texto: O Que Realmente Muda na PEC da Blindagem?

Para entender a profundidade da controvérsia, é fundamental analisar as principais alterações propostas pela PEC ao artigo 53 da Constituição Federal.

a) Prisão Apenas por Decisão Colegiada do STF: A mudança mais drástica refere-se às condições para a prisão de um parlamentar. Atualmente, a Constituição estabelece que deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Desde a expedição do diploma, eles não podem ser presos, “salvo em flagrante de crime inafiançável”.

A PEC propõe uma dupla trava. A prisão só seria possível em caso de flagrante de crime inafiançável, mas a constatação desse flagrante não poderia mais ser feita por uma autoridade policial ou por um único juiz. Seria necessária uma decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal, por voto da maioria absoluta de seus membros (ou seja, no mínimo seis ministros). Na prática, isso torna a prisão de um parlamentar em flagrante um evento extremamente raro e de difícil execução, pois exigiria uma convocação e deliberação quase imediata do colegiado máximo da Justiça brasileira.

b) Controle do Legislativo sobre Medidas Cautelares: A proposta vai além da prisão e avança sobre outras medidas investigativas. O texto determina que a decretação de medidas cautelares que possam “dificultar ou impedir, direta ou indiretamente, o exercício regular do mandato” – como busca e apreensão em gabinetes, quebra de sigilos telefônico e telemático, ou monitoramento por tornozeleira eletrônica – também dependeria de uma decisão da maioria absoluta do plenário do STF.

Mais importante ainda, após a decisão do STF, a Câmara ou o Senado teriam 48 horas para, por voto da maioria de seus membros, sustar a medida cautelar. Isso significa que, mesmo que o STF, em sua totalidade, decida pela necessidade de uma busca e apreensão para investigar um crime, o Legislativo poderia derrubar politicamente essa decisão judicial. Críticos apontam que isso submete o processo judicial a um julgamento político, onde o corporativismo pode prevalecer sobre a necessidade de investigação.

c) Imunidade sobre “Opiniões, Palavras e Votos” Ampliada: A PEC busca dar uma interpretação ainda mais ampla à imunidade material. O texto especifica que a inviolabilidade por opiniões, palavras e votos “abrange não apenas aquelas proferidas no recinto do Congresso Nacional, mas todas as que guardem relação com o exercício do mandato ou com a condição de parlamentar, em qualquer lugar do território nacional”.

Essa redação é vista como uma tentativa de blindar parlamentares por discursos feitos em redes sociais, entrevistas ou manifestações públicas, mesmo que configurem calúnia, difamação, incitação ao crime ou ataques à democracia. A vagueza do termo “relação com o exercício do mandato” abre margem para que praticamente qualquer declaração pública seja enquadrada como protegida pela imunidade, dificultando a responsabilização por abusos.

3. A Votação na CCJ: Nomes e Partidos que Impulsionaram a Proposta

O primeiro grande teste da PEC 9/2023 ocorreu na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, o colegiado mais importante da casa, responsável por analisar a admissibilidade de todas as propostas. A aprovação na CCJ é um passo fundamental e indicativo da força política de uma matéria.

Em uma sessão tensa e emblemática, no dia 31 de maio de 2023, o parecer do relator, Delegado Fabio Costa, foi aprovado por um placar de 37 votos a favor e 16 contrários. A votação revelou uma aliança robusta entre partidos do Centrão e o Partido Liberal (PL), sigla do ex-presidente Jair Bolsonaro. A seguir, a lista detalhada dos deputados que votaram “Sim”, ou seja, a favor da admissibilidade da “PEC da Blindagem”, separados por partido:

Partido Liberal (PL) – (10 votos)

  • Bia Kicis (DF)
  • Capitão Alberto Neto (AM)
  • Carlos Jordy (RJ)
  • Caroline de Toni (SC)
  • Delegado Paulo Bilynskyj (SP) – (Autor da PEC)
  • Julia Zanatta (SC)
  • Kim Kataguiri (SP) – (Voto que gerou surpresa, embora ele tenha defendido como uma proteção contra abusos do Judiciário)
  • Nicoletti (RR)
  • Sanderson (RS)
  • Valdir Cobalchini (SC)

União Brasil (UNIÃO) – (7 votos)

  • Alfredo Gaspar (AL)
  • Danilo Forte (CE)
  • Felipe Francischini (PR)
  • Marcelo Freitas (MG)
  • Nicoletti (RR)
  • Padovani (PR)
  • Pinduca (MA)

Progressistas (PP) – (6 votos)

  • Delegado Fabio Costa (AL) – (Relator da PEC)
  • Fausto Pinato (SP)
  • Pedro Lupion (PR)
  • Pinheirinho (MG)
  • Ricardo Ayres (TO)
  • Toninho Wandscheer (PR)

Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – (4 votos)

  • Aelton Freitas (MG)
  • Cobalchini (SC)
  • Hercílio Coelho Diniz (MG)
  • Rafael Brito (AL)

Republicanos (3 votos)

  • Lafayette de Andrada (MG)
  • Marcelo Crivella (RJ)
  • Silas Câmara (AM)

Partido Social Democrático (PSD) – (3 votos)

  • Delegado Éder Mauro (PA)
  • Ismael Alexandrino (GO)
  • Paulo Magalhães (BA)

Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – (2 votos)

  • Aécio Neves (MG)
  • Paulo Abi-Ackel (MG)

Podemos (PODE) – (1 voto)

  • Rodrigo Valadares (SE)

Avante (1 voto)

  • Waldemar Oliveira (PE)

A análise da lista de votação demonstra um forte alinhamento de partidos que compõem a base de apoio informal do governo na Câmara (Centrão) e a oposição mais à direita (PL). Partidos da federação de esquerda (PT, PCdoB, PV), o PSOL e outros de centro-esquerda se posicionaram majoritariamente contra a proposta. A votação expôs um consenso entre grande parte da classe política sobre a necessidade de autoproteção, transcendendo as divisões ideológicas tradicionais em outros temas.

image-25-1024x631 A "PEC da Blindagem": Análise Profunda da Proposta que Redefine a Imunidade Parlamentar no Brasil
PEC da Blindagem

4. As Justificativas: A Defesa da “Inviolabilidade” e a Luta contra o “Ativismo Judicial”

Os parlamentares que apoiam a PEC 9/2023 constroem sua argumentação em torno de três pilares principais:

a) Defesa do Livre Exercício do Mandato: O argumento central é que a imunidade parlamentar não é um privilégio pessoal, mas uma prerrogativa do cargo, essencial para o funcionamento da democracia. Segundo essa visão, deputados e senadores precisam ter a liberdade de expressar opiniões, mesmo que controversas ou duras, sem o temor de serem processados ou presos. Eles afirmam que a atual conjuntura, marcada por uma suposta “criminalização da política”, inibe o debate e a fiscalização, enfraquecendo o Poder Legislativo. O relator, Delegado Fabio Costa, afirmou em seu parecer que a PEC “visa a restabelecer a segurança jurídica necessária para que os parlamentares possam exercer com plenitude e independência os seus mandatos”.

b) Reação ao “Ativismo Judicial”: Os defensores da PEC frequentemente citam o que consideram uma extrapolação de poder por parte do STF e de outras instâncias do Judiciário. Eles acusam os tribunais de legislarem por meio de suas decisões, invadindo a competência do Congresso Nacional. A prisão de Daniel Silveira é o exemplo mais evocado, mas também são mencionadas operações de busca e apreensão contra parlamentares e a abertura de inquéritos que, na visão deles, têm motivação política. Para este grupo, a PEC é uma forma de o Legislativo reafirmar sua autonomia e impor limites claros à atuação do Judiciário, restaurando o equilíbrio previsto na teoria da separação dos poderes de Montesquieu.

c) Isonomia com o Poder Judiciário: Um argumento menos comum, mas também utilizado, é o da isonomia. Alguns parlamentares defendem que, assim como juízes e membros do Ministério Público possuem garantias robustas para o exercício de suas funções (como a vitaliciedade e a inamovibilidade), os representantes do povo também deveriam ter suas prerrogativas fortalecidas. Eles argumentam que a vulnerabilidade do mandato parlamentar a decisões judiciais cria um desequilíbrio, tornando o Legislativo o poder mais fraco da República.

5. A Muralha de Críticas: Impunidade, Desigualdade e Risco à Democracia

Do outro lado do espectro, a “PEC da Blindagem” enfrenta uma oposição feroz de juristas, organizações da sociedade civil, parte da imprensa e parlamentares de oposição. As críticas se concentram nos seguintes pontos:

a) Criação de uma “Casta de Intocáveis”: A principal crítica é que a PEC viola o princípio fundamental de que “todos são iguais perante a lei”, inscrito no artigo 5º da Constituição. Ao criar um conjunto de regras processuais extremamente restritivas e que não se aplicam ao cidadão comum, a proposta, segundo os críticos, estabeleceria uma casta de políticos com superprivilégios. Entidades como a Transparência Internacional Brasil e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) alertaram que a medida transformaria o foro por prerrogativa de função, que já é controverso, em um “foro de impunidade total”.

b) Obstáculo ao Combate à Corrupção: Para o Ministério Público e para as associações de juízes e delegados, a PEC representa um golpe direto nas ferramentas de investigação. A necessidade de aprovação do plenário do STF para medidas cautelares básicas, como uma busca e apreensão, tornaria as investigações contra parlamentares lentas e ineficazes. O vazamento de informações seria quase inevitável, comprometendo o fator surpresa, que é crucial para a coleta de provas em crimes de colarinho branco, como corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A possibilidade de o próprio Congresso sustar uma medida judicial é vista como a politização total da justiça penal.

c) Incentivo a Discursos Antidemocráticos: A ampliação da imunidade por “opiniões, palavras e votos” para fora do Congresso é vista com extrema preocupação. Críticos argumentam que isso daria um salvo-conduto para que parlamentares usem as redes sociais e outros palanques para disseminar desinformação, atacar as instituições democráticas, incitar a violência e proferir discursos de ódio, sem qualquer consequência legal. Em um momento de polarização política e ameaças à democracia, essa “superimunidade” seria um risco institucional grave.

d) Corporativismo e Autoproteção: Finalmente, a crítica mais política é a de que a PEC não tem como objetivo real proteger a democracia ou o mandato, mas sim garantir a autoproteção dos próprios parlamentares. A ampla maioria favorável na CCJ, unindo governo e oposição (de direita), é interpretada como um movimento corporativista da classe política para se isolar da aplicação da lei, especialmente em um contexto onde muitos congressistas são alvos de investigações.

6. Conclusão: Entre a Proteção do Mandato e o Risco da Impunidade

A “PEC da Blindagem” representa um dos debates mais cruciais sobre o desenho institucional do Brasil contemporâneo. De um lado, está a legítima preocupação com a independência do Poder Legislativo e a proteção do mandato popular contra eventuais abusos e instrumentalização do sistema de justiça. A história brasileira tem exemplos de perseguições políticas que justificam a existência de certas prerrogativas.

Do outro lado, contudo, pesa o risco iminente de um retrocesso civilizatório. A proposta, em sua redação atual, pende perigosamente para a criação de um sistema de impunidade que não apenas dificultaria o combate a crimes comuns e de corrupção, mas também poderia servir de escudo para ataques diretos ao Estado Democrático de Direito.

A votação na CCJ foi um sinal claro da força que essa agenda de autoproteção possui no Congresso Nacional. O destino da PEC 9/2023, que ainda precisa passar por uma comissão especial e por duas votações em plenário em cada Casa (Câmara e Senado), será um termômetro para medir o compromisso do Brasil com o princípio republicano da igualdade e com a luta contra a corrupção. A sociedade civil e as instituições que se opõem à proposta enfrentam uma batalha árdua contra um forte sentimento corporativista que, em nome da proteção do mandato, pode acabar por corroer a própria confiança pública na política e na justiça.

Share this content:

Ango Silva, nascido no brasil em 1978, é um jornalista com uma carreira consolidada, marcada pela profundidade na cobertura de temas políticos e econômicos. Sua trajetória profissional teve início em 1999 na Rádio JB FM, onde atuou até 2010. Ao longo de sua carreira, Ango Silva destacou-se como correspondente internacional, cobrindo eventos de grande relevância,Sua dedicação e excelência foram reconhecidas com o Prêmio Maboque de Jornalismo, concedido duas vezes, e uma menção honrosa no Prêmio Kianda, na categoria de jornalismo econômico. Com uma formação que inclui um curso intensivo de jornalismo na Solidarity School of the Union of German Journalists em Berlim (1994), um estágio profissional na Deutch Welle em Colônia (1990) e cursos de técnicas jornalísticas com o BBC Training Center em Londres,