A Voz das Ruas: Como as Manifestações contra a PEC da Blindagem e o PL da Anistia Abalaram o Congresso e Selaram o Destino de Propostas Controversas
Uma onda de indignação varreu o Brasil em 21 de setembro de 2025. Dezenas de milhares de cidadãos, em um coro uníssono que ecoou pelas principais cidades do país, saíram às ruas para rechaçar duas propostas legislativas que, segundo eles, ameaçavam os pilares da justiça e da igualdade: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) apelidada de “PEC da Blindagem” e o Projeto de Lei (PL) da Anistia.
A força e a capilaridade desses atos públicos não apenas expuseram uma profunda fratura entre a classe política e a sociedade civil, mas também exerceram uma pressão avassaladora sobre o Senado Federal, impactando diretamente e, ao que tudo indica, de forma definitiva, a tramitação e o futuro dessas controversas matérias.

As manifestações, marcadas por uma diversidade de participantes, desde movimentos sociais e sindicatos a artistas, intelectuais e cidadãos sem filiação partidária, foram a culminação de semanas de intenso debate público e repulsa crescente a propostas vistas como um retrocesso institucional. De um lado, a PEC da Blindagem, aprovada na Câmara dos Deputados, buscava ampliar as prerrogativas de parlamentares, dificultando investigações e processos criminais contra eles. Do outro, o PL da Anistia, em suas diversas versões, propunha o perdão a envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, que resultaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em Brasília.
Este artigo se aprofunda nos detalhes da PEC da Blindagem e do PL da Anistia, analisa a magnitude e as mensagens das manifestações populares, e explora o impacto direto dessa mobilização na tramitação das propostas no Senado Federal, que se tornou o epicentro da resistência institucional a essas medidas.
A “PEC da Blindagem”: Uma Muralha Contra a Justiça?
Aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados em meados de setembro de 2025, a Proposta de Emenda à Constituição nº 3/2021, rapidamente apelidada pela imprensa e pela sociedade de “PEC da Blindagem” ou “PEC da Impunidade“, representava uma alteração substancial nas regras de responsabilização criminal de membros do Congresso Nacional. O texto, articulado por um amplo espectro de partidos do chamado “Centrão” com apoio da oposição bolsonarista, propunha, em sua essência, a criação de uma fortaleza jurídica em torno de deputados e senadores.
Os pontos mais sensíveis e criticados da proposta eram:
- Restrição à Prisão em Flagrante: A PEC limitava a prisão de parlamentares apenas a casos de flagrante de crimes inafiançáveis, como definidos na Constituição (racismo, tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos). Mais crucialmente, a manutenção de qualquer prisão dependeria de uma deliberação da respectiva Casa Legislativa (Câmara ou Senado) em até 24 horas, por meio de voto secreto. Críticos argumentaram que o voto secreto anularia a transparência e a responsabilidade do parlamentar perante seus eleitores, facilitando decisões corporativistas.
- Autorização Prévia para Abertura de Processo Criminal: Talvez o ponto mais controverso, a PEC resgatava a chamada “licença prévia”. Pelo texto, o Supremo Tribunal Federal (STF) só poderia instaurar uma ação penal contra um deputado ou senador após autorização da respectiva Casa, novamente por meio de voto da maioria de seus membros. Essa medida, que existiu no passado e foi derrubada em 2001 por ser considerada um entrave à justiça, era vista como a principal ferramenta de “blindagem”, sujeitando a persecução penal a um juízo puramente político.
- Ampliação do Foro por Prerrogativa de Função: A proposta estendia o chamado “foro privilegiado” – o direito de ser julgado apenas pelo STF – aos presidentes nacionais de partidos políticos com representação no Congresso. A justificativa dos defensores era de que esses dirigentes exercem atividade política complementar à dos parlamentares, mas opositores viram na medida uma tentativa de proteger aliados políticos e dificultar investigações em primeira instância, onde a apuração costuma ser mais célere.
- Controle sobre Medidas Cautelares: A PEC determinava que apenas o STF poderia impor medidas cautelares de natureza pessoal (como o uso de tornozeleira eletrônica ou o afastamento do cargo) contra parlamentares, limitando a atuação de juízes de instâncias inferiores, mesmo durante a fase de investigação.
Os defensores da PEC, majoritariamente concentrados na Câmara, argumentavam que as medidas eram necessárias para coibir o que consideravam “excessos” e “ativismo judicial” por parte do Poder Judiciário, em especial do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Alegavam que parlamentares vinham sendo alvo de decisões monocráticas e medidas cautelares desproporcionais que cerceavam a liberdade de expressão e a atividade parlamentar. O discurso era o de restaurar a “harmonia entre os Poderes” e garantir a autonomia do Legislativo.
No entanto, para uma vasta gama de juristas, organizações da sociedade civil como a Transparência Internacional e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e boa parte da opinião pública, a proposta representava um grave atentado ao princípio republicano da igualdade de todos perante a lei. A crítica central era a de que a PEC criaria uma “casta de intocáveis”, protegidos não pela natureza de suas funções, mas por um escudo corporativista que institucionalizaria a impunidade, minando a confiança da população nas instituições democráticas.
O PL da Anistia: Pacificação ou Impunidade para Atos Antidemocráticos?
Paralelamente à tramitação da PEC da Blindagem, ganhava força na Câmara dos Deputados a discussão em torno de um Projeto de Lei que concedesse anistia aos participantes dos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. A proposta, defendida enfaticamente pela oposição bolsonarista, era vista como uma tentativa de reverter as consequências jurídicas para centenas de pessoas condenadas e investigadas por crimes como tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa e dano ao patrimônio público.
Diversas versões do projeto circularam, mas a ideia central era a mesma: o perdão judicial e a extinção das punições para os envolvidos nos atos. Os projetos em tramitação conjunta no Congresso, como o PL 5064/2023, visavam anistiar crimes específicos tipificados no Código Penal em decorrência das manifestações daquele dia.
Os argumentos dos proponentes da anistia se baseavam em alguns pilares:
- Pacificação Nacional: Deputados favoráveis à medida, como Gustavo Gayer (PL-GO), defendiam que a anistia seria um gesto necessário para “pacificar o país” e “virar a página” da polarização política, argumentando que a manutenção das penas apenas aprofundaria as divisões na sociedade.
- Críticas ao Processo Judicial: Havia um forte discurso de que os julgamentos conduzidos pelo STF foram injustos, com violações ao devido processo legal, à individualização das condutas e ao direito à ampla defesa. Proponentes alegavam que muitos dos condenados eram “patriotas” e “manifestantes” e não “criminosos”.
- Simetria Histórica: Alguns parlamentares evocavam a Lei da Anistia de 1979, que perdoou crimes políticos durante a Ditadura Militar, como um precedente para a medida atual, embora juristas e historiadores apontassem as profundas diferenças de contexto e natureza entre os dois eventos.
A reação contrária foi imediata e veemente. Para os críticos, anistiar os responsáveis pelos ataques de 8 de janeiro seria o equivalente a legitimar a violência contra a democracia e enviar uma mensagem perigosa de que atentados contra as instituições do Estado ficariam impunes. O governo federal, por meio do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, manifestou-se firmemente contrário, prometendo vetar qualquer proposta nesse sentido. Partidos da base aliada, movimentos sociais e especialistas em direito constitucional argumentavam que crimes contra o Estado Democrático de Direito são, por sua natureza, inanistiáveis, pois atentam contra a própria soberania popular expressa na Constituição.
A aprovação de um requerimento de urgência para a tramitação do PL da Anistia na Câmara, em 17 de setembro, soou o alarme e serviu como um dos principais catalisadores para as manifestações que se seguiriam.
A Explosão Social: As Ruas Dão o Seu Recado
No domingo, 21 de setembro de 2025, o Brasil assistiu a uma das maiores mobilizações populares dos últimos anos. Convocados por uma frente ampla que incluía a Frente Povo Sem Medo, a Frente Brasil Popular, centrais sindicais como a CUT, e com a adesão espontânea de milhares de cidadãos, os protestos ocorreram em ao menos 22 capitais e dezenas de outras cidades.
Em São Paulo, a Avenida Paulista foi tomada por uma multidão estimada em cerca de 43.400 pessoas, segundo levantamento do portal Poder360. A cor predominante era o vermelho, associado aos partidos de esquerda e movimentos populares, mas a presença de bandeiras do Brasil era notória, em uma tentativa de ressignificar o símbolo, amplamente utilizado por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. No Rio de Janeiro, um ato em Copacabana reuniu artistas de renome como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, emprestando um forte peso simbólico e cultural à mobilização. Em Brasília, Belo Horizonte, Salvador e outras capitais, o cenário se repetiu: milhares de pessoas nas ruas com cartazes e palavras de ordem que uniam as duas pautas.
As mensagens eram claras e diretas: “Anistia Não!”, “PEC da Blindagem Não!”, “Em Defesa da Democracia” e “Congresso Inimigo do Povo”. O alvo principal era o Congresso Nacional, percebido como agindo em causa própria e de costas para a sociedade. A simultaneidade e a força dos atos demonstraram uma capacidade de mobilização significativa do campo progressista e de setores da sociedade civil preocupados com a integridade do sistema de justiça.
A análise do perfil dos manifestantes revelava uma coalizão diversa, unida pela repulsa às duas propostas. A pauta contra a impunidade e em defesa da democracia provou ter um apelo que transcendia as bolhas ideológicas, ecoando um sentimento popular de que a classe política estaria tentando se colocar acima da lei, ao mesmo tempo em que perdoaria um dos ataques mais graves à República desde a redemocratização.
O Impacto no Senado: A Pressão das Ruas Encontra Eco Institucional
Se na Câmara dos Deputados as propostas encontraram um terreno fértil para avançar, no Senado Federal o cenário se mostrou radicalmente diferente, e as manifestações populares foram um fator decisivo para consolidar essa resistência. Desde a aprovação da PEC da Blindagem pela Câmara, vozes importantes no Senado já se posicionavam de forma crítica. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), senador Otto Alencar (PSD-BA), classificou a proposta como uma “repulsa” e uma “indignação”, prometendo que ela não passaria facilmente pelo colegiado.
A pressão das ruas deu o respaldo político que os senadores contrários à matéria precisavam para se posicionar publicamente e de forma contundente. O recado das manifestações foi entendido pelo Senado como um mandato popular para barrar o que era percebido como um retrocesso. Nos dias que se seguiram aos protestos, o que era uma resistência se transformou em uma maioria consolidada.
O senador Alessandro Vieira (MDB-SE), designado relator da PEC na CCJ, afirmou em entrevistas que já havia um número suficiente de senadores publicamente declarados contra a proposta para derrotá-la. Segundo seus cálculos, ao menos 51 dos 81 senadores – o número necessário para aprovar uma emenda constitucional é de 49 – já haviam se manifestado contrariamente. Partidos como o MDB, que possui uma das maiores bancadas, fecharam questão contra o texto.
A percepção no Senado era a de que a Câmara dos Deputados havia agido de forma excessivamente corporativista e se desconectado do sentimento da população. A aprovação da PEC foi vista como uma “pauta tóxica”, como definiu o próprio presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), após a repercussão negativa. Senadores, mais sensíveis à pressão da opinião pública devido ao seu mandato de oito anos e representação estadual, perceberam que aprovar a “PEC da Blindagem” teria um custo político altíssimo.
O impacto se estendeu também à tramitação do PL da Anistia. Embora a proposta ainda estivesse na Câmara, a demonstração de força popular contra ela sinalizou para o presidente do Senado, e para a Casa como um todo, que qualquer matéria similar que eventualmente chegasse ali enfrentaria uma barreira intransponível. A mobilização popular efetivamente “contaminou” politicamente a pauta da anistia, tornando sua aprovação em qualquer uma das Casas uma possibilidade cada vez mais remota.
Conclusão: A Soberania Popular como Freio e Contrapeso

As manifestações de 21 de setembro de 2025 contra a PEC da Blindagem e o PL da Anistia foram um poderoso lembrete do papel da soberania popular como um mecanismo de freio e contrapeso em uma democracia. Quando as instituições políticas parecem se desviar de seu propósito fundamental – representar o interesse público –, a mobilização da sociedade civil pode se tornar a força corretiva necessária.
A PEC da Blindagem, nascida de uma articulação política na Câmara que buscava autoproteção, sucumbiu à combinação de resistência institucional no Senado e repulsa popular massiva. As ruas deram aos senadores a legitimidade e a coragem política para sepultar uma proposta que, para a maioria da população, feria de morte o princípio da igualdade. Da mesma forma, o ímpeto por trás do PL da Anistia foi severamente abalado, com a sociedade deixando claro que não há espaço para o perdão de crimes que atentam contra a própria existência do Estado Democrático de Direito.
O episódio deixa lições importantes.
Mostra a resiliência das forças democráticas na sociedade brasileira e sua capacidade de se organizar contra ameaças percebidas. Revela também as diferentes culturas políticas da Câmara dos Deputados, mais suscetível a pressões de curto prazo e interesses corporativos, e do Senado Federal, que por sua configuração tende a atuar com um maior grau de moderação e sensibilidade à opinião pública nacional.
O destino da PEC da Blindagem no Senado parece selado: a rejeição. O futuro do PL da Anistia na Câmara tornou-se incerto e politicamente inviável. Ambos os resultados são uma consequência direta da força demonstrada pelos milhares de brasileiros que, em um domingo de setembro, escolheram as ruas para reafirmar que, na República, ninguém, absolutamente ninguém, deve estar acima da lei.
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